Especial 40 anos da democracia: Colégio Eleitoral consagra Tancredo Neves

Eleição do político mineiro sepulta a ditadura. Mas até que se chegasse à composição que o tornou presidente da República, com a ajuda de antigos governistas, foi preciso muita negociação
Passavam das 11h30 da manhã de 15 de janeiro de 1985, quando o deputado federal João Cunha (PMDB-SP) aproxima-se do microfone de apartes do plenário da Câmara. Não era um personagem qualquer. Foi ele quem denunciou o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, dentro das instalações do DOI-Codi do II Exército, na tristemente famosa Rua Tutóia 921, na Vila Mariana, em São Paulo. Entre emocionado e indignado, declama:
“Tenho a honra de dizer que o meu voto enterra a ditadura fascista, corrupta e entreguista que infelicitou a minha Pátria. Voto em Tancredo Neves, na vitória”.
O resultado foi uma goleada: 480 votos para Tancredo e Sarney e 180, para Maluf e Marcílio. Houve 17 abstenções e nove ausências. A primeira página do Correio Braziliense de 16 de janeiro de 1985 resume a apoteose. “Nova República, 1º dia — Tancredo vence Maluf por 300 votos — José Sarney é o vice-presidente eleito. O país parou para festejar o resultado do Colégio”.
Os recados
No discurso da vitória, muitos recados do presidente eleito. O primeiro, e talvez o mais importante, de que aquela tinha sido a última eleição indireta para o comando do país. O segundo, uma exortação ao exercício de tolerância, da composição e do diálogo, que tinham sido os elementos fundamentais para as articulações que o levaram até ali. O terceiro, de que uma nova Constituição haveria de ser escrita, para tomar o lugar daquela promulgada em 1967 — e emendada em 1969 para reforçar o poder ditatorial militar. O quarto, de que seu governo seria de coalizão e reconstrução. E o quinto, de que a Nova República tinha de representar, necessariamente, a retomada do crescimento econômico e o freio no galope da inflação. (Leia trechos do discurso no quadro ao fim da matéria)
“Os militares estavam com complexo de culpa, sentindo-se fracassados. Já havia sido completado o ciclo de 20 anos, originalmente delineado como sendo o máximo do ciclo preparatório da democracia. Então houve a eleição indireta de Tancredo. A redemocratização criou uma democracia disfuncional e representou uma enorme oportunidade perdida, porque eliminou-se o autoritarismo político, mas não se eliminou o autoritarismo econômico. Aumentou-se o autoritarismo econômico no início do governo civil”, criticou o ex-ministro e ex-deputado federal Roberto Campos, em depoimento a Ronaldo Costa Couto para o livro Memória viva do regime militar — Brasil: 1964-1985.
Mesmo que não soubesse que se tornaria presidente da República, a construção da candidatura de Tancredo deu o primeiro passo com sua eleição para senador pelo MDB, a partir de 1979. Trazia na bagagem uma boa experiência de graves crises. Foi ministro da Justiça (26 de junho de 1953 a 24 de agosto de 1954) no governo de Getúlio Vargas, no período agudo do atentado contra o jornalista Carlos Lacerda ao suicídio do presidente. E primeiro-ministro (de 8 de setembro de 1961 a julho de 1962) na experiência parlamentarista para que João Goulart não governasse com plenos poderes de presidente, em razão da renúncia de Jânio Quadros. Diálogo e composição eram seu forte.
Mauro Santayana, no livro Conciliação e transição — As armas de Tancredo, resumiu o esforço que, ainda sem ter sido ungido candidato da oposição contra o regime, o político mineiro haveria de encabeçar: “Entendem também os mineiros que o passo prévio para a conciliação é a renúncia. Renúncia medida e comedida, bem se entenda, porque conciliação não é entrega. É troca. Trocam-se concessões para ajustar-se o entendimento”.
Esse primeiro esforço veio na forma de criação do PP, possibilidade aberta com a aprovação da reforma partidária, em 1979. O partido, cuja criação foi anunciada em discurso no Senado, reunia egressos do MDB e dissidências da antiga Arena. Os fundadores eram os diametralmente opostos Tancredo e o banqueiro e ex-governador Magalhães Pinto — em comum, o fato de serem mineiros. Na legenda, reuniriam-se o também banqueiro e ex-prefeito de São Paulo Olavo Setúbal; o ex-governador paulista Paulo Egydio Martins; e o jurista e professor Cláudio Lembo. Do Nordeste, vinha a liderança do potiguar Aluízio Alves. A proposta do PP era ficar no meio do caminho, entre o partido do “sim”, o PMDB, e o do “sim, senhor” — a Arena, que trocara a plumagem e tornara-se PDS.
O projeto do PP dura bem menos do que Tancredo gostaria, uma vez que, com a aprovação da vinculação de voto para a eleição aos governos estaduais em 1982, as coligações foram proibidas. O partido, assim, perde qualquer chance de sobrevivência. O jeito é voltar para a nave-mãe, o PMDB, para que os políticos que compunham o PP tivessem futuro.
Ex-emedebista e, agora, neopeemedebista, Tancredo vai para a disputa do governo de Minas Gerais contra Elizeu Resende, do PDS e turbinado pela máquina dos palácios — o do Planalto, do presidente João Baptista Figueiredo, e o da Liberdade, onde mandava o piauiense Francelino Pereira. O jogo foi pesado e a vitória, apertada. Tancredo foi eleito com apenas 243 mil votos de vantagem — 2,667 milhões contra 2,424 milhões do adversário.
Para o governo federal, se a vitória de Tancredo não era boa, ruim também não era. Muito melhor do que ter de lidar, por exemplo, com Leonel Brizola (PDT), vencedor do pleito no Rio de Janeiro — apesar dos esforços para dar a vitória a Moreira Franco (PDS), que havia de ser beneficiado pela fraude, exposta em cadeia nacional de rádio e tevê, na contagem dos votos feita pela Proconsult. Franco Montoro (MDB), vitorioso em São Paulo, também não era dos mais gostados pelo Planalto.
A construção
Poder-se-ia dizer que, por exclusão, Tancredo era o nome que mais agregava apoios na oposição e o mais palatável entre os apoiadores do regime. Mas, de todos, era o que trazia a maior experiência, tinha uma trajetória inquestionável e apontado como alguém com uma inesgotável capacidade de dialogar e negociar.
Se nas hostes da oposição, o rio corria para o mar — ou seja, Tancredo emergia como o presidenciável à sucessão de Figueiredo —, do lado do governo tudo o que não havia era consenso sobre quem seria o candidato do regime. Escolhido para coordenar a própria sucessão dentro do PDS, o general presidente deixava clara a nula aptidão para lidar com a política e suas miudezas. O governo tinha maioria no Colégio Eleitoral, mas, do Palácio do Planalto, Figueiredo dava poucos sinais (e, quando os dava, sempre enigmáticos) sobre aquilo que pretendia.
Diante disso, era natural que os balões de ensaio fossem se desprendendo. Da lista de supostos presidenciáveis, constaram o senador Marco Maciel; os ministros Jarbas Passarinho (Previdência Social), Hélio Beltrão (especial para a Desburocratização) e João Leitão de Abreu (Casa Civil); e o presidente da Itaipu Binacional, general José Costa Cavalcanti. Mas, para valer, os pré-candidatos do PDS eram o vice-presidente Aureliano Chaves, o ministro dos Transportes, Mário Andreazza — coronel da reserva do Exército — e o deputado federal Paulo Salim Maluf.
A inércia de Figueiredo prejudicava Andreazza. Por pertencer ao primeiro escalão do governo, o ministro não encontrava condições de fazer campanha abertamente, apesar da proximidade com o general presidente. Só que esse não era o único problema: a força do ex-presidente general Ernesto Geisel ainda era grande nos bastidores militares. E ele tinha restrições a Andreazza por, na década de 1960, apoiar o general Artur da Costa e Silva para a sucessão do primeiro ditador pós-1964, Humberto Castelo Branco. Outra barreira era a suposta antipatia do ministro do Exército, general Walter Pires — conforme garantia o brigadeiro Délio Jardim de Matos, ministro da Aeronáutica, nas conversas que mantinha.
O adversário
Maluf sentiu-se à vontade para sair em campo e consolidar-se. Apresentava-se como candidato do PDS sem qualquer constrangimento, apesar de não estar nesta condição oficialmente. Isso era facilitado, também, pelo fato de Aureliano não conseguir emplacar. O vice tinha a simpatia dos militares, mas causou constrangimento no partido ao defender uma consulta às bases e, também, defender eleições diretas para presidente.
Fosse apenas isso, talvez se contornasse a situação. Porém, no afastamento de Figueiredo — por causa de um distúrbio cardíaco, inicialmente internou-se no Hospital dos Servidores do Estado, no Rio de Janeiro, mas, semanas depois, teve de ser operado em Cleveland, nos Estados Unidos, no The Cleveland Clinic, onde colocou duas pontes no coração, uma safena e outra mamária —, Aureliano assenhoreou-se da Presidência. Foram 52 dias (de 23 de setembro a 12 de novembro de 1983) nos quais o vice agiu como se, supostamente, o titular não voltasse. Uma pichação na cúpula do Senado haveria de irritar ainda mais o general presidente — “Aureliano, o homem-chave para presidente”, propunha, por meio de um trocadilho ruim.
Em uma entrevista publicada na edição do Correio Braziliense de 7 de agosto de 1983, o ex-ministro da Casa Civil de Figueiredo, Golbery do Couto e Silva, vaticinou sobre o vice: “Que grande paradoxo este. Quanto mais cresce, mais o Aureliano cava a sepultura. Aureliano está ocupando muito espaço, mas só será candidato se Figueiredo quiser. E ele não vai querer”, registra Bernardo Braga Pasqualette, em Me esqueçam — Figueiredo, a biografia de uma Presidência.
Segundo o general presidente relatou a Ronaldo Costa Couto, a animosidade dele com Aureliano teve a ver, também, por causa de uma conversa que tiveram sobre Tancredo. É Figueiredo quem diz:
“Quis fazer um acordo com Tancredo. E, num dia de despacho, disse para ele (Aureliano): ‘Por que não fazemos um acordo com Tancredo? É a coisa mais fácil! Ele me propôs isso. Proponho a ele que indique o candidato (ao Colégio Eleitoral) e está acabado’. E ele me disse o diabo do Tancredo. Descreveu toda a vida do Tancredo, que nem conhecia. Fiquei estarrecido. E terminou dizendo: ‘Com esse, não formo. Não me terão junto’. De repente, dois anos depois, ele me aparece um dia, com um papel no bolso. Tira: ‘Tenho aqui o rascunho do acordo com o doutor Tancredo. Sempre fui por eleição direta’. Eu disse: ‘Você sempre foi pela eleição direta, quando? Você nunca me disse isso! A prova de que não é, é que você foi eleito numa eleição indireta e aceitou. Se era pela eleição direta, nunca deveria ter aceitado’. E terminamos a nossa conversa. Ele sempre me tratou com muito carinho. E, nesse dia, disse a ele: ‘Está terminada a nossa conversa’. Ele foi me procurar para ver se conciliava os nossos pontos de vista. ‘Não, Aureliano, nunca chegaremos a um resultado. Quando muito, poderemos ser amigos particulares. Correligionários, nunca. Você é político profissional, eu sou soldado’. (…) Ele ficou zangado comigo e, aí, começou a dizer bobagens. Inclusive, quando fui para Cleveland, ele deu uma entrevista falando coisas que não aceitei. (…) Publicamente, sempre me elogiava muito. Mas, no fim, terminava com coisas ferinas. E quando cobrava dele, negava”.
Com Aureliano e Andreazza praticamente inviabilizados, Maluf se movimenta com desenvoltura. O problema é que Figueiredo não gostava do deputado por razões também pessoais. Numa conversa com o ainda senador José Sarney, deu o motivo: “Vou matar o Maluf, meto um punhal na barriga dele, se for necessário. Ele quis me corromper por meio dos meus filhos”, disse. A raiva vinha do governo de Emílio Médici, no qual foi ministro-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI). Os filhos de Figueiredo assuntaram Maluf sobre a possibilidade de financiamento público para abrir um cine drive-in. O então governador de São Paulo respondeu-lhes que, por serem filhos do general, tinham “de pensar em coisas maiores” — disse Carlos Átila, diplomata e ex-porta-voz de Figueiredo, a Bernardo Braga Pasqualette.
Nesse diálogo com Sarney, pouco antes da ida para Cleveland, o general presidente anunciou que abandonaria o PDS. O futuro vice-presidente de Tancredo respondeu que o seguiria se o fizesse, como observa Regina Echeverria, em Sarney, a biografia.
A desistência
A ideia foi abandonada, até que Figueiredo joga para o alto a coordenação do PDS à própria sucessão, no pronunciamento de fim de ano, em dezembro de 1983. O fez em cadeia de rádio e tevê. De Nova York, onde passava as festas, Maluf classificou o gesto como “estupendo” — frisa Bernardo Braga Pasqualette. Afinal, o deputado avança velozmente no controle da máquina do partido. A turbinar-lhe a candidatura, o apoio de Golbery.
Com o jogo da sucessão presidencial embaralhado e a Emenda Dante de Oliveira (PEC 05/83) para as eleições presidencial diretas sepultada, ao fim da sessão da Câmara em 26 de abril de 1984, começou a circular a proposta para a prorrogação do mandato de Figueiredo até 1987, com eleição direta para sucedê-lo. Entre os defensores, Brizola, os ministros Leitão de Abreu e César Cals (Minas e Energia) e o Partido Comunista Brasileiro (PCB). O próprio general presidente garante que isso não o interessava.
“Havia alguns elementos, como o Cals. Mas o próprio (ministro do Exército, Walter) Pires não, absolutamente. Ele disse numa reunião de oficiais generais: ‘Não falem isso com o João, porque vai brigar com vocês’. O próprio Medeiros (Otávio, ministro-chefe do SNI) também disse. (…) Havia mais elementos do PMDB que queriam que eu continuasse do que do outro lado (PDS)”, disse Figueiredo a Ronaldo Costa Couto.
Sem Diretas Já e afastada a hipótese da prorrogação de mandato, o jogo seria no Colégio Eleitoral. Dentro do PDS, a hipótese de o candidato ser Maluf mortificava muita gente, entre elas Sarney, senador e presidente do partido. O “malufismo”, porém, consolidara-se — sua tropa de choque era comandada pelo deputado Amaral Neto (RJ) e por Calim Eid, fiel escudeiro de Maluf.
Surge, então, a ideia de uma consulta às bases do PDS para tentar dificultar a vida do parlamentar paulista. Sarney fecha o circuito, com apoio do líder do governo na Câmara, deputado Nelson Marchezan (RS), do vice-presidente da legenda, senador Jorge Bornhausen (SC), e dos ministros Leitão de Abreu e Rubem Ludwig (chefe do Gabinete Militar). Figueiredo, porém, rói a corda, conforme mostra carta do general presidente a Sarney, cujo conteúdo está publicado em Sarney, a biografia. A manobra, que seria levada para a Executiva do PDS no dia seguinte, toma o tiro fatal.
Numa reunião em clima de guerra, a prévias foram rejeitadas e o “malufismo” prevalece. Ato contínuo, Sarney anuncia a renúncia à presidência do PDS e Bornhausen deixa a vice. Nascia o embrião da Aliança Democrática, que se aglutinaria em torno de Tancredo. Ulysses Guimarães, presidente do PMDB, sente o cheiro da oportunidade e procura o senador catarinense. Unia-os todos a rejeição a Maluf. Um segundo encontro no apartamento funcional de Bornhausen, na 309 Sul, junta Sarney, os senadores Marco Maciel (PDS-PE) e Guilherme Palmeira (PDS-AL), e o deputado Saulo Queirós (PDS-MS). Começa a definir-se a dissidência.
Indignado, Figueiredo escreve a Sarney. Percebe que o senador está com um pé fora do PDS: “Lamento que, neste momento de tamanha relevância para a vida de nosso partido, vossa excelência, surpreendendo correligionários e amigos, tenha renunciado à presidência do PDS. Lamento, também, que haja tomado esta decisão sem ouvir-me”, diz trecho da carta, datada de 13 de junho de 1984.
O senador devolve a mensagem do general presidente. Inicia dizendo: “Peço-lhe licença para considerá-la (a carta de Figueiredo) injusta. Com sacrifício pessoal e grande desgaste político, dei ao PDS e ao governo lealdade e trabalho. (…) A informação que a vossa excelência deram de que surpreendi a amigos e correligionários não é verdadeira”. Pelo tom, Sarney pusera os dois pés fora do partido. A formalização era questão de tempo.
A decisão
Ainda em junho, o acordo da Frente Liberal começou a ser costurado. Sarney, Ulysses, Aureliano, Tancredo, mais os dissidentes do PMDB e do PDS, aceleram a formação da Aliança Democrática. Numa conversa com o senador maranhense, o governador de Minas propôs: “Chegou o momento de formarmos uma frente e você é indispensável, pois fez o que ninguém teve coragem de fazer”, disse Tancredo a Sarney, segundo a biógrafa Regina Echeverria.
Sarney, antes desanimado, passa à ação. Conversa com Bornhausen, Guilherme Palmeira, Aureliano e Marco Maciel — os dois últimos relutam em unir-se a Tancredo, mas os dois primeiros aceitam de cara. Mas, para embarcar na Aliança, o ainda vice de Figueiredo exige que o vice de Tancredo seja indicado por eles. Calejado nas manhas da política, o governador topa: “Aureliano é mineiro como eu. Não se faz carta sem receber a resposta antes”, brinca Tancredo. Formalizam a composição em um documento. Resta saber quem ocuparia a vaga.
Se dependesse apenas de Sarney, o vice de Tancredo seria Maciel, que não aceita. Novamente Aureliano intervém e sugere que o ex-presidente do PDS assuma a tarefa. Sarney reluta: argumenta que, por ter estado à frente do partido do governo até dias antes, seria constrangedor surgir como segundo da chapa da oposição.
Aureliano, porém, tem uma carta na manga. “O PDS não vota no Tancredo. Você conhece o PDS. Só com você nós ganhamos. O Maciel pode ser um bom sujeito, mas não tem as qualidades que você tem para que possamos alcançar a vitória”, disse a Sarney.
Ao saberem que os recém-convertidos oposicionistas queriam o senador maranhense como vice de Tancredo, os autênticos do PMDB dizem: “nem pensar” — um deles, o senador gaúcho Pedro Simon, aspirava ao posto. O governador mineiro pretendia que Costa Cavacanti formasse com ele a chapa. De novo, foi Aureliano quem impôs a condição: “Sem Sarney não há Aliança”.
Antecipando-se à possibilidade de a definição do nome ficar dramática, Ulysses encerra a discussão apelando aos números: “Levantaram a questão do Sarney para vice. ‘Sim, e o que é que há?’, eu perguntava. O camarada dizia que não podia, que ele era do PDS até anteontem etc. Então, eu encerrava o papo: ‘Não dá, aritmeticamente falando, para elegermos o Tancredo sem os votos da Frente Liberal, que, como contrapartida, ganhou o direito de indicar o vice — e indicou. Ou você acha que devemos deixar o Maluf eleger-se?'”, relata Luís Gutemberg, em Moisés, codinome Ulysses Guimarães — Uma biografia.
Em 7 de agosto de 1984, a Aliança Democrática — que uniu o PMDB e a Frente Liberal — é oficializada. O ex-presidente do PDS torna-se um peemedebista dias depois e a convenção do partido referenda a chapa Tancredo-Sarney, com direito a cantos de exaltação, como “Ei, ei, ei, Sarney é nosso rei” e “Salim, Salim, Salim, sua alegria está no fim” — em referência ao nome do meio de Maluf. Por sinal, em 11 de agosto, ele tornara-se o candidato do governo ao Colégio Eleitoral, batendo, sobretudo, Andreazza.
Apesar de decididas as chapas para a eleição indireta, isso não quer dizer que os dias até o pleito de 15 de janeiro de 1985 seriam serenos. Embora sem detonar bombas, os radicais de extrema-direita continuam ativos e espalham que a vitória da oposição jogará o país no comunismo.
Em 21 de setembro de 1984, depois de um comício de Tancredo em Goiânia, os altos comandos das Forças Armadas reúnem-se sob a alegação de analisar a corrida sucessória. Na verdade, pretendiam obter aval do generalato para a prorrogação do mandato de Figueiredo. A ideia foi sepultada. Como motores das forças contrárias às pretensões continuístas, o general Leônidas Pires Gonçalves e o almirante Henrique Sabóia, futuros ministros do Exército e da Marinha de Tancredo.
Ao mesmo tempo em que Maluf torna-se garoto-propaganda do governo, Tancredo, em manifestação na capital capixaba, faz duas promessas. A primeira: sua vitória no Colégio Eleitoral seria a fundação da Nova República, que viraria a página de um longo capítulo da vida do país, marcado, sobretudo, pela brutalidade com os adversários do governo, mácula que permanece na alma brasileira; e a segunda: convocaria uma Assembleia Nacional Constituinte.
“Neste momento alto na história, orgulhamo-nos de pertencer a um povo que não se abate, que sabe afastar o medo e não aceita acolher o ódio. A Nação inteira comunga deste ato de esperança. Reencontramos, depois de ilusões perdidas e pesados sacrifícios, o bom e velho caminho democrático. Não há Pátria onde falta democracia.
(…) A primeira tarefa de meu governo é a de promover a organização institucional do Estado. Se, para isso, devemos recorrer à experiência histórica, cabe-nos também compreender que vamos criar um Estado moderno, apto a administrar a Nação no futuro dinâmico que está sendo construído.
Sem abandonar os deveres e preocupações de cada dia, temos de concentrar os nossos esforços na busca de consenso básico à nova Carta Política.
Convoco-vos ao grande debate constitucional. Deveis, nos próximos meses, discutir, em todos os auditórios, na imprensa e nas ruas, nos partidos e nos parlamentos, nas universidades e nos sindicatos, os grandes problemas nacionais e os legítimos interesses de cada grupo social.
É nessa discussão ampla que ireis identificar os vossos delegados ao poder constituinte e lhes atribuir o mandato de redigir a lei fundamental do país. A Constituição não é assunto restrito aos juristas, aos sábios ou aos políticos. Não pode ser ato de algumas elites. É responsabilidade de todo o povo. Daí a preocupação de que ela não surja no açodamento, mas resulte de uma profunda reflexão nacional.
Os deputados constituintes, mandatários da soberania popular, saberão redigir uma carta política ajustada às circunstâncias históricas. Clara e imperativa em seus princípios, a Constituição deverá ser flexível quanto ao modo, para que as crises políticas conjunturais sejam contidas na inteligência da lei.
(…) Creio não poder fazê-lo de melhor forma do que, perante Deus e perante a Nação, nesta hora inicial de itinerário comum, reafirmar o compromisso de resgatar duas aspirações que, nos últimos 20 anos, sustentaram, com penosa obstinação, a esperança do povo:
(…) É inegável que o processo de transição teve contribuições isoladas que não podem ser omitidas:
— a do Poder Legislativo, que, muitas vezes mutilado em sua constituição e nas suas faculdades, conservou acesa a chama votiva da representação popular, como última sentinela no campo da batalha democrática;
— a do Poder Judiciário, que se manteve imune a influências dos casuísmos, para, na atual conjuntura, fazer prevalecer o espírito de reordenação democrática; (…)
— a da imprensa — jornais, emissoras de rádio e televisão — que sob a censura policial, a coação política e econômica, ousou bravamente enfrentar o poder para servir à liberdade do povo; (…)
— a das Forças Armadas, na sua decisão de se manterem alheias ao processo político, respeitando os seus desdobramentos até a alternativa do poder;
(…) O entendimento nacional não exclui o confronto das ideias, a defesa de doutrinas políticas divergentes, a pluralidade de opiniões. Não pretendemos entendimento que signifique capitulação, nem o morno encontro dos antagonistas políticos em região de imobilismo e apatia. O entendimento se faz em torno de razões maiores às da preservação da integridade e da soberania nacionais.
(…) A reconstrução democrática do país significa o retorno, em toda a liberdade, dos trabalhadores à vida política. Sem seu apoio, nenhum governo poderá cumprir suas tarefas constitucionais.
(…) Não vamos nos dispersar. Continuemos reunidos, como nas praças públicas, com a mesma emoção, a mesma dignidade e a mesma decisão.
Se todos quisermos, dizia-nos, há quase 200 anos, Tiradentes, aquele herói enlouquecido de esperança, podemos fazer deste país uma grande Nação.
Vamos fazê-la.”
Fonte: Correio Braziliense
Foto: Cece
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